abril 20, 2014

"Adeus senhora esquerda", por Commonware

PICICA: "Na Itália, são tempos perplexos em que às vezes vale mais a pena ler colunistas de direita do que de esquerda. Embora errem em todas as propostas políticas, às vezes acertam em cheio quando apontam os descaminhos da esquerda, sua incapacidade crônica em se livrar da nostalgia do welfare state, que esconde a nostalgia pelos bons patrões e operários, segundo o projeto histórico de submissão ao capitalismo fordista, ainda que disfarçado de um europeísmo civilizatório. Um keynesianismo extemporâneo que já foi superado pelas próprias lutas, hoje concentradas em antagonizar o capital no modo de regulação pós-fordista do trabalho, explorando a situação geral de precariedade, a informalidade, o racismo modulado. 

O editorial dos companheiros italianos aposta que a única saída esteja na revolta, sobre as bases materiais de indignação do percurso de lutas iniciado no 19-O do ano passado e que, na semana passada, voltou a levar 30 mil manifestantes em Roma. Esse percurso de recomposição tem o potencial de não só superar a impotência saudosista da esquerda, como também o bloco cínico de poder que, naquele país, se condensa ao redor do novo premiê de centro-esquerda do PD, Matteo Renzi. 

Em suma, a leitura é que, na Itália hoje, só exista alternativa numa retomada do político como luta de classe, na ação direta de ruas, coletivos autônomos e ocupações, além de qualquer mediação institucional, e certamente fora de qualquer aliança com a esquerda institucional. [N.E.]"


Adeus senhora esquerda

19/04/2014
Por Commonware


Por Commonware (editorial), em 14/6 | Trad. UniNômade
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Na Itália, são tempos perplexos em que às vezes vale mais a pena ler colunistas de direita do que de esquerda. Embora errem em todas as propostas políticas, às vezes acertam em cheio quando apontam os descaminhos da esquerda, sua incapacidade crônica em se livrar da nostalgia do welfare state, que esconde a nostalgia pelos bons patrões e operários, segundo o projeto histórico de submissão ao capitalismo fordista, ainda que disfarçado de um europeísmo civilizatório. Um keynesianismo extemporâneo que já foi superado pelas próprias lutas, hoje concentradas em antagonizar o capital no modo de regulação pós-fordista do trabalho, explorando a situação geral de precariedade, a informalidade, o racismo modulado. 

O editorial dos companheiros italianos aposta que a única saída esteja na revolta, sobre as bases materiais de indignação do percurso de lutas iniciado no 19-O do ano passado e que, na semana passada, voltou a levar 30 mil manifestantes em Roma. Esse percurso de recomposição tem o potencial de não só superar a impotência saudosista da esquerda, como também o bloco cínico de poder que, naquele país, se condensa ao redor do novo premiê de centro-esquerda do PD, Matteo Renzi. 

Em suma, a leitura é que, na Itália hoje, só exista alternativa numa retomada do político como luta de classe, na ação direta de ruas, coletivos autônomos e ocupações, além de qualquer mediação institucional, e certamente fora de qualquer aliança com a esquerda institucional. [N.E.]



Melhor um grande reacionário do que um pequeno revolucionário, disse uma vez Mario Tronti. Se a segunda categoria ainda continua muito bem representada, a primeira, decisivamente, está escasseando. Nestes tempos, portanto, é aconselhável contentar-se com algum pequeno reacionário que, de vez em quando, consiga acertar alguma coisa.

Este é o caso de Galli della Loggia. No editorial do jornal Corriere della Sera, “A síndrome da nostalgia”, de 13 de abril, ele analisa por que, apesar da crise econômica e de um “mal estar social” que atingiu níveis insuportáveis, a esquerda não consegue aproveitar o momento. Os dados sobre o mal estar na União Europeia fornecidos por Loggia estão, aliás, edulcorados: 25 milhões de desocupados, uma precarização galopante, salários que não chegam nem mesmo para quem trabalha. Sabemos que a realidade é ainda mais dura do que isso, que a precariedade é um elemento permanente que precede a própria crise, e que os working poor não são mais exceção, mas a norma das novas condições de trabalho. Porém, mais interessante do que isso são as três razões pessoais do editorialista, para “explicar a dificuldade de a esquerda traduzir a crise econômica em consenso”.

Primeiro de tudo, Galli fala da nostalgia em que a esquerda está presa: nostalgia do compromisso socialdemocrático, do emprego (leia-se: exploração) em tempo indeterminado, do welfare state e o controle sindical da força-trabalho que lhe acompanha. O exemplo dessa nostalgia mordente, ironiza Galli della Loggia, está na comoção suscitada na esquerda ao redor do documentário de W. Veltroni sobre Enrico Berlinguer [presidente do Partido Comunista Italiano nos anos 70].

Tudo isso, como segunda razão, impede a esquerda de desenvolver narrativas e representações adequadas da realidade. Não entende por que, por exemplo, seja às vezes a direita quem intercepte — eleitoralmente — o “mal estar”; a esquerda não entende, sobretudo, que “não está escrito em parte alguma que os ‘pobres’ devam pensar e ‘fazer coisas de esquerda’”.

Last but no least, a esquerda e seus expoentes vêm sendo percebidos — justamente, acrescenta com razão Galli della Loggia — como parte significativa da elite no poder, não somente devido às posições e colocações políticas, mas inclusive no modo de vestir-se e nos estilos de vida. “No âmbito da UE e suas políticas, ademais, a esquerda parece pouco ou nada distinguível de seus adversários, prostrada há tempos ao mesmíssimo vácuo ideológico do ‘europeísmo’ de que prescindimos.” “Europeísmo a prescindir”, escreve Galli della Loggia; estudaria ele talvez os nossos materiais?
Na parte final, o editorialista demonstra ser antes reacionário do que pequeno, com uma apologia repulsiva de Matteo Renzi [premiê italiano desde fevereiro, do partido de centro-esquerda PD], a suposta novidade, a ponto de ser a resposta para as três razões do fracasso da esquerda, florescendo em meio a sua nostalgia, ideologia e compromisso com as elites tradicionais.

Mas Galli della Loggia não faz somente um endosso do primeiro-ministro, mas sim um vínculo político: no lugar em que o editorialista do Corriere espera o grandalhão Matteo, e sua capacidade de ir além da liderança pessoal, para coagular dirigentes e dimensões coletivas, de maneira a constituir uma perspectiva hegemônica. Um bloco social e de ordem, capaz de governar a crise permanente e as políticas de austeridade. E aqui é o mesmo Galli della Loggia, como seus colegas de esquerda, que estão tomados por uma nostalgia grotesca.

Cerco ao trabalho de esquerda

Mas a data em que o editorial foi publicado não é casual, pelo menos não para nós. Na mesma página (como em todos os meios de comunicação), é dada uma grande visibilidade da manifestação que, no dia precedente, — continuando o percurso aberto no 19 de outubro de 2013 (19-O), — levou às ruas de Roma 30 mil pessoas. O que conquistou a visibilidade midiática foi o cerco ao Ministério do Trabalho, aquele de propriedade de Legacoop [liga nacional de cooperativas], com a determinação das práticas de luta (obviamente reduzidas nos jornais à habitual minoria vândala, de poucas centenas, que arruína a manifestação pacífica, isto é, que não se cansa) e as violentas e brutais atuações da polícia (obviamente, cordeirinhos sacrificados no altar da heroica defesa da ordem democrática).

Neste ponto, abandonamos a leitura dos grandes meios, eles não nos trazem nada fora da sonolenta e pré-fabricada repetição dos mesmos mantras, para voltarmos a concentrar-nos sobre a praça de 12 de abril. Aqui, encontramos a confirmação de alguns elementos que já tínhamos evidenciado no dia seguinte ao 19-O no ano passado: a centralidade de temas como moradia e renda (que começam a sair de sua conotação abstrata como proposta, para encarnarem-se em práticas concretas de reapropriação), a ampla participação imigrante (alguns meios, alarmados, notam que não se trata mais apenas de imigrantes que participam esporadicamente nas manifestações, mas ocupantes de casas, trabalhadores em luta ou mesmo militantes). Alinham-se as presenças consolidadas de movimentos territoriais e lutas específicas, que têm promovido o percurso do 19-O.

Alguém, ficando numa dialética totalmente institucional, pode tentar ver nesta composição e em suas formas de expressão aquilo que corresponda a seus próprios desejos: seja o retorno a um estado-nação que deveria ser retomado (como e quando, entre outras coisas, não dá pra saber), seja um europeísmo vazio e a-histórico que, dependendo da necessidade, se possa tingir de jacobinismo, de federalismo ou mesmo de independentismo, visto que, sobre o plano das retóricas desligadas das relações de força, todas essas formas são inadequadas. Nesta posição, ainda há ainda outra vez a incapacidade de livrar-se da esquerda, com sua confusão entre idealismo e materialismo, entre carta de princípios e princípio da carta, com sua trágica incapacidade de pensar através da composição de classe e não por meio da aliança entre grupos políticos.

Parece-nos, ao contrário, que esta composição [de classe], e ao que ela alude em sentido mais amplo, esteja em boa medida distante ou simplesmente separada da esquerda e, portanto, daquelas características que Galli della Loggia identifica e critica, em causa própria. Por que esta composição [de classe] não traz nostalgia de um compromisso social-democrático, de que as novas gerações sequer ouviram falar. Nela, não há espaço para narrativas ideológicas, percebidas como abstratas e alienadas da materialidade dos problemas que é preciso enfrentar na crise. Existe um ódio profundo, radicado e mesmo instintivo, nos enfrentamentos com o bloco de poder político e social vigente, em que a esquerda é corresponsável e protagonista. Nesse sentido, é natural encontrar como principal inimigo o PD e seu governo. Na Itália, finalmente, começou o pós-antiberlusconismo. É exatamente nestas características e não em improváveis receitas institucionais, que a composição de classe poderá descobrir-se europeia e transnacional, uma vez que rastreie, no espaço global, os fios comuns com outras expressões da subjetividade coletiva.

Não é o caso, de resto, que o que Galli della Loggia goste de Renzo seja o seu “bom senso populista”, substituindo os interesses de classe por uma não mais precisa imagem dos “pobres”, que possa evidentemente ser adaptada a figuras diversas em função das conveniências, de maneira que estejam disponíveis de ser representadas e não enfastiarem, ou melhor, não se organizem autonomamente. A compacidade da marcha durante o cerco e ante as atuações criminosas das forças policiais, a disponibilidade ou de qualquer modo a simpatia com a concretude das práticas, simbolizam com eficácia que se está caminhando na direção certa. É, de fato, terminado o tempo de simbolismos ruins (de vez em quando inventados pelos meios de comunicação mainstream, e sempre a eles submetidos), isto é, os que pretendem substituir, simular ou representar as lutas. As lutas produzem os símbolos e não vice-versa.

O 12 de abril foi então uma jornada importante, e o foi sobretudo porque inscrita num processo que vem já de bem longe e ainda vai caminhar muito longe. A próxima etapa deste processo, feita do cotidiano de lutas e tentativas de organização territorial, será o 11 de julho em Turim, por ocasião do encontro europeu — para dizer o mínimo: provocatório — sobre a desocupação juvenil. Mesmo os pequenos reacionários do Corriere nos explicam porque sobre este tema, no quadro da crise (econômica e da representação), a revolta é hoje um princípio de realismo político.

PS. Queremos a liberdade imediata aos companheiros presos no sábado passado. Repetiremos mais uma vez a vocês que não podem parar o vento.



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Fonte: Universidade Nômade Brasil

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